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Sob eco da Lava Jato, Câmara acelera projeto para minar poder do Ministério Público

Procuradores e promotores reclamam que manobra é mais uma no sentido de dificultar combate à corrupção. Jurista vê ato ilegítimo e professora diz que há exagero nas queixas

O presidente da Câmara, Arthur Lira, durante sessão no dia 14.
O presidente da Câmara, Arthur Lira, durante sessão no dia 14.Agência Câmara

A operação Lava Jato fez tremer a classe política e o mundo empresarial que negocia com o Governo. Levou um presidente de empresa, Marcelo Odebrecht, e um ex-presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, para a prisão, e mostrou-se firme no propósito de ‘limpar’ a política. A intenção era boa, conquistou o Brasil, mas o tempo mostrou um direcionamento político do Ministério Público e do então juiz Sergio Moro, que hoje cobra seu preço. A Câmara dos Deputados acelerou uma cruzada para aumentar o controle político de quem fiscaliza as autoridades públicas. Está prevista para esta terça-feira a votação da proposta de emenda constitucional número 5 de 2021, que trata da mudança na composição do Conselho Nacional do Ministério Público. Patrocinado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), o texto é relatado pelo deputado Paulo Magalhães (PSD-BA) e já tem apoio de parlamentares de várias legendas, do PT ao PSL, do PSB ao Cidadania. O tema foi debatido no plenário da Casa nas últimas duas semanas, atropelando discussões prévias em uma comissão especial e audiências públicas. O projeto tem enfrentado uma dura oposição de membros do MP, que entendem que sua aprovação deve ferir de morte a instituição.

Esta é a segunda tentativa de minar os poderes de procuradores e promotores em menos de um mês. A primeira ocorreu ainda entre setembro e outubro, quando as duas casas do Congresso Nacional aprovaram mudanças na lei da improbidade administrativa que afrouxam as regras para punir os gestores que cometerem esse crime. Nesse pacote está inclusa a permissão da prática de nepotismo.

As principais mudanças que preocuparam os especialistas foram o aumento dos conselheiros do CNMP que seriam indicados pelo Congresso Nacional — de dois para cinco entre 17 membros — e a obrigação de que o Legislativo indique o corregedor da instituição, que também exerceria o papel de vice-presidente. Ao corregedor cabe analisar todas as denúncias administrativas contra membros do Ministério Público que pudessem gerar qualquer punição. Um exemplo: a corregedoria do CNMP analisaria a conduta de qualquer procurador da Lava Jato que tivesse usado do cargo para punir irregularmente um político.

Representantes de cinco entidades de procuradores e promotores coordenados pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp) têm feito pressão para que a Câmara rejeite a PEC 5/2021. Mas sem sucesso, por enquanto. Em notas técnicas e comunicados à imprensa, os procuradores dizem que as propostas “interfere em garantias fundamentais para a independência da instituição”. Eles temem que, se o corregedor for indicado por políticos que podem ser alvos de investigações possa haver uma atuação direcionada contra os fiscais da lei.

Na mesma linha, segue a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR). Para ela, há a necessidade de melhorar o funcionamento do CNP, “o que inclui a necessária escuta do Poder Legislativo e grupos sociais”, com a revisão de “mecanismos de transparência e accountability”. Contudo, o texto em análise não aponta condições para a correção de erros cometidos pelos membros do Ministério Público, avalia a associação. “Ao contrário, politiza o conselho e subordina a agenda correcional a interesses ocasionais contra atuações do MP em temas de relevância nacional”.

Por essa razão, em Brasília, a proposta tem sido chamada de PEC da Vingança. Ainda assim, há a sensação de que mudanças precisariam ser feitas para que o MP fosse mais rígido com seus membros. “Hoje, nenhum membro do MP responde contra improbidade. É importante um conselho forte, com presença, para que tenhamos transparência”, ressaltou o padrinho da proposta, Arthur Lira em entrevista à rádio CNN.

O ex-chefe da Lava Jato Deltan Dallagnol, por exemplo, foi denunciado em 2016 pela defesa de Lula ao Conselho Nacional do Ministério Público pelo uso do famoso powerpoint para acusar o ex-presidente Lula de corrupção. A projeção, apresentada numa coletiva de imprensa, colocava o nome do petista para colocá-lo como chefe de quadrilha de inúmeros crimes. O julgamento de Dallagnol foi adiado 42 vezes pelo Conselho até que a queixa prescreveu. O instrumento rudimentar já foi proibido no exterior, alega a defesa de Lula, por promover a induções genéricas.

Dallagnol, assim como o time de procuradores que integraram a Lava Jato, tiveram conversas vazadas pela série de reportagens da Vaza Jato, liderada pelo jornal The Intercept, e também na operação Spoofing, da Polícia Federal, que localizou os hackers que vazaram o conteúdo das conversas entre procuradores e o ex-juiz Sergio Moro no aplicativo Telegram. As comunicações revelaram como os procuradores agiram diversas vezes sob a orientação de Moro na busca de provas contra o ex-presidente Lula. A ida de Moro para o Governo Bolsonaro em 2019 só consolidou a leitura da atuação política de procuradores.

Há uma desinstitucionalização da democracia”
Joaquim Falcão, jurista

O Conselho Nacional do Ministério Público foi criado em 2004. Tem como função fazer a fiscalização administrativa, financeira e disciplinar do MP e de seus membros. Um dos que trabalharam para sua criação foi o jurista Joaquim Falcão, professor de direito da Fundação Getulio Vargas. Hoje, ao analisar a atual PEC ele diz que há uma tentativa da classe política de se blindar.

“É uma clara estratégia do populismo de direita de neutralizar e paralisar as instituições de controle”, disse Falcão ao EL PAÍS. O professor foi um árduo defensor a atuação da Lava Jato. Lira é um aliado de primeira hora do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Para Falcão, a mudança tem “uma aparência de legalidade, mas é ilegítima”. “Na ditadura militar tínhamos o Congresso funcionando, o Executivo funcionando e o Judiciário funcionando. Tudo parecia ser legal, mas não era. É o mesmo que estão tentando fazer agora com o Ministério Público. Há uma desinstitucionalização da democracia”.

Professora na Escola Brasileira de Direito e doutora em Direito de Estado, a advogada Telma Rocha Lisowski avalia que as mudanças são uma aparente reação à Lava Jato e aos seus desdobramentos. Em um primeiro momento, a Lava Jato – encerrada oficialmente em fevereiro deste ano após quase seis anos de apurações – cercou políticos de diversos espectros, mas especialmente do PT. A operação é tida como decisiva para a derrubada da presidente Dilma Rousseff e para tirar o ex-presidente Lula da disputa eleitoral contra Jair Bolsonaro em 2018.

Contudo, Lisowski diz não ter uma visão catastrófica, como apresentaram as associações de procuradores e promotores. “Há um certo exagero sobre essa influência política”. Hoje, os procuradores gerais da República e dos Estados já são indicados pelo presidente e pelos governadores. Em alguns casos, como no do presidente Bolsonaro, o governante nem respeita uma lista tríplice votada pelos procuradores e acaba escolhendo alguém que seja mais alinhado com o seu Governo.

Na mesma linha, seguiu a doutoranda em direito pela Universidade de Salamanca e professora na Faculdade de Direito de Franca, Ana Cristina Gomes. “O que temos hoje é uma pseudo independência do Ministério Público”. Segundo ela, há um temor exacerbado por parte dos procuradores. “Por que no Brasil há um órgão que só ele tem o direito de se auto-avaliar e se autofiscalizar? Por que um cidadão com notório saber jurídico não pode fiscalizá-lo?”.

Na análise de Lisowski, a maior preocupação deveria ser, caso fosse mantida, a previsão que constava do relatório inicial e permitia que o CNMP revisasse medidas tomadas pelos seus membros, funcionando como uma segunda ou terceira instância judicial. “Seria como se o Conselho Nacional de Justiça pudesse cassar acórdãos, decisões, sentenças de juízes do Brasil inteiro”. Essa alteração foi retirada do relatório do deputado Paulo Magalhães, que cedeu à pressão dos procuradores.

Desde que chegou à Câmara, o texto já teve três versões distintas. Nesta terça-feira, será a sua prova de fogo. Seus apoiadores calculavam que ele tinha menos de 250 votos. Para uma PEC ser aprovada são necessários os votos de 308 dos 513 deputados federais.

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